“bismar-se. onda de aniquilamento que
sobrevém ao sujeito amoroso por desespero ou plenitude.
Werther
1. seja mágoa, seja felicidade, toma-se às
vezes o desejo de me abismar.
a manhã (no campo) está cinzenta e fresca.
sofro (de não sei que incidente). uma ideia de suicídio se apresenta, pura de
todo ressentimento (nenhuma chantagem) contra ninguém); é uma ideia insípida;
não rompe nada (não “quebra” nada, combina com a cor (com o silêncio, com o
abandono) desta manhã.
um outro dia, debaixo de chuva, esperamos o
barco na beira de um lago; de felicidade, desta vez, a mesma onda de
aniquilamento me vem. Assim, às vezes, a desgraça ou a alegria assaltam-se, sem
que sobrevenha nenhum tumulto: nenhum pathos
mais: estou dissolvido, não despedaçado: caio, esvazio-me, derreto. esse
pensamento; levemente tocado, tentado, tateado (como se tateia a água com o pé)
pode voltar. nada tem de solene.
isso é muito exatamente a suavidade.
Tristão, Baudelaire, Rusbrock
2. a onda do abismo pode vir de uma mágoa,
mas também de uma fusão: morremos juntos de nos amar; morte aberta, por
diluição no éter, morte enclausurada da tumba comum.
o abismo é um momento de hipnose. Uma
sugestão age, que me ordena desmaiar sem me matar. daí, talvez, a suavidade do
abismo: não tenho nenhuma responsabilidade nisso, o ato (de morrer) não cabe a
mim: confio-me, transfiro-me (a quem? a deus, à natureza, a tudo, menos ao
outro).
3. quando assim me acontece de abismar-me, é
porque já não há lugar para mim em parte alguma, nem mesmo na morte. a imagem
do outro – à qual eu me colocava, da qual vivia – já ao existe; ora é uma
catástrofe (fútil) que parece afastá-la para sempre, ora é uma felicidade
excessiva que me faz alcançá-la; de qualquer modo, separando ou dissolvido, não
sou recolhido em parte alguma; na frente, nem eu, nem você, nem morte, mais
nada a quem falar.
(estranhamente, é no ato extremo do
imaginário amoroso – aniquilar-se por ter sido expulso da imagem ou nela ter-se
confundido – que se consuma uma queda deste imaginário: no tempo breve de um
vacilar, perco minha estrutura de amante: é um luto factício, sem trabalho:
algo como uma impronúncia.)
4. amante da morte? é dizer demais de uma
metade: half in Love with easeful death (keats: a morte livre do morrer. Tenho
então este fantasma: uma hemorragia suave que não correria de nenhum ponto de
meu corpo, uma consumação quase
imediata, calcada para que eu tenha tempo de dessofrer sem ter ainda
desaparecido. instalo-me fugidiamente num pensamento falseado da morte
(falseado como uma chave empenhada): penso a morte ao lado; penso-a segundo uma lógica impensada, derivo para fora do
binário fatal que liga a morte e a vida opondo-as.
Sartre
5. o abismo não passaria de um aniquilamento
oportuno? não me seria difícil nele ler não um repouso, mas uma emoção. mascaro
meu luto sob uma fuga; diluo-me, desvaneço-me para escapar a esta compacidade,
a esta saturação que faz de mim um sujeito responsável: saio: é o êxtase.
rua do cherch-midi, após uma noite difícil,
X... explicava-me muito bem, com voz precisa, com frases bem formadas,
distantes de todo indizível, que desejava às vezes esvaecer-se; lamentava
jamais poder desaparecer voluntariamente, quando tivesse vontade.
suas palavras diziam que pretendia então
sucumbir à sua fraqueza, não resistir Às mágoas feitas pelo mundo;mas, ao mesmo
tempo, ele substituía esta força alquebrada por uma outra força, uma outra
afirmação: assumo contra tudo e todos uma
recusa de coragem, e portanto uma denegação de moral: é o que dizia a voz de
X...”
trecho extraído do livro “fragmentos de um discurso
amoroso, de Roland Barthes, 2003, pág. 3-6.
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