domingo, 9 de junho de 2013

“Quem já conheceu o estado de graça reconhecerá o que vou dizer. Não me refiro à inspiração, que é uma graça especial que tantas vezes acontece aos que lidam com arte.

O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Neste estado, além da tranqüila felicidade que se irradia de pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve, porque na graça tudo é tão, tão leve. É uma lucidez de quem não advinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Não perguntem o quê, porque só posso responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.

E há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom, porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente.

No estado de graça, vê-se às vezes a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás, ganha uma espécie de nimbo que não é imaginário: vem do esplendor da irradiação quase matemática das coisas e das pessoas. Passa-se a sentir que tudo o que existe – pessoa ou coisa – respira e exala uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Na verdade, o mundo é impalpável.

Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer consigo advinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que, de súbito, se torna totalmente real, porque é comum e humana e reconhecível.

As descobertas nesse estado são indizíveis e incomunicáveis. É por isso que, em estado de graça, mantenho-me sentada, quieta, silenciosa. É como numa anunciação. Não sendo, porém, precedida pelos anjos que, suponho, antecedem o estado de graça dos santos, é como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo.

Depois, lentamente, se sai. Não como se estivesse estado em transe – não há nenhum transe –, sai-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este é. Também já é um suspiro de saudade. Pois tendo experimentado ganhar um corpo e uma alma e a terra, quer-se mais e mais. Inútil querer: só vem quando quer e espontaneamente.

Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqüência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão. Enquanto que os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.

Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que também é real, mas ninguém nos entenderia jamais. Perderíamos a linguagem em comum.

Também é bom que não venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia me habituar à felicidade – esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam – tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida”.

Lispector, Clarice, “Estado de Graça” in A descoberta do mundo, Ed. Rocco, 1999.


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