segunda-feira, 10 de junho de 2013

“eu me abismo, eu sucumbo...”

“bismar-se. onda de aniquilamento que sobrevém ao sujeito amoroso por desespero ou plenitude.

Werther

1. seja mágoa, seja felicidade, toma-se às vezes o desejo de me abismar.
a manhã (no campo) está cinzenta e fresca. sofro (de não sei que incidente). uma ideia de suicídio se apresenta, pura de todo ressentimento (nenhuma chantagem) contra ninguém); é uma ideia insípida; não rompe nada (não “quebra” nada, combina com a cor (com o silêncio, com o abandono) desta manhã.

um outro dia, debaixo de chuva, esperamos o barco na beira de um lago; de felicidade, desta vez, a mesma onda de aniquilamento me vem. Assim, às vezes, a desgraça ou a alegria assaltam-se, sem que sobrevenha nenhum tumulto: nenhum pathos mais: estou dissolvido, não despedaçado: caio, esvazio-me, derreto. esse pensamento; levemente tocado, tentado, tateado (como se tateia a água com o pé) pode voltar. nada tem de solene.
isso é muito exatamente a suavidade.

Tristão, Baudelaire, Rusbrock

2. a onda do abismo pode vir de uma mágoa, mas também de uma fusão: morremos juntos de nos amar; morte aberta, por diluição no éter, morte enclausurada da tumba comum.
o abismo é um momento de hipnose. Uma sugestão age, que me ordena desmaiar sem me matar. daí, talvez, a suavidade do abismo: não tenho nenhuma responsabilidade nisso, o ato (de morrer) não cabe a mim: confio-me, transfiro-me (a quem? a deus, à natureza, a tudo, menos ao outro).

3. quando assim me acontece de abismar-me, é porque já não há lugar para mim em parte alguma, nem mesmo na morte. a imagem do outro – à qual eu me colocava, da qual vivia – já ao existe; ora é uma catástrofe (fútil) que parece afastá-la para sempre, ora é uma felicidade excessiva que me faz alcançá-la; de qualquer modo, separando ou dissolvido, não sou recolhido em parte alguma; na frente, nem eu, nem você, nem morte, mais nada a quem falar.
(estranhamente, é no ato extremo do imaginário amoroso – aniquilar-se por ter sido expulso da imagem ou nela ter-se confundido – que se consuma uma queda deste imaginário: no tempo breve de um vacilar, perco minha estrutura de amante: é um luto factício, sem trabalho: algo como uma impronúncia.)
4. amante da morte? é dizer demais de uma metade: half in Love with easeful death (keats: a morte livre do morrer. Tenho então este fantasma: uma hemorragia suave que não correria de nenhum ponto de meu corpo, uma consumação quase imediata, calcada para que eu tenha tempo de dessofrer sem ter ainda desaparecido. instalo-me fugidiamente num pensamento falseado da morte (falseado como uma chave empenhada): penso a morte ao lado; penso-a segundo uma lógica impensada, derivo para fora do binário fatal que liga a morte e a vida opondo-as.

Sartre

5. o abismo não passaria de um aniquilamento oportuno? não me seria difícil nele ler não um repouso, mas uma emoção. mascaro meu luto sob uma fuga; diluo-me, desvaneço-me para escapar a esta compacidade, a esta saturação que faz de mim um sujeito responsável: saio: é o êxtase.

rua do cherch-midi, após uma noite difícil, X... explicava-me muito bem, com voz precisa, com frases bem formadas, distantes de todo indizível, que desejava às vezes esvaecer-se; lamentava jamais poder desaparecer voluntariamente, quando tivesse vontade.
suas palavras diziam que pretendia então sucumbir à sua fraqueza, não resistir Às mágoas feitas pelo mundo;mas, ao mesmo tempo, ele substituía esta força alquebrada por uma outra força, uma outra afirmação: assumo contra tudo e todos uma recusa de coragem, e portanto uma denegação de moral: é o que dizia a voz de X...”


trecho extraído do livro “fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, 2003, pág. 3-6. 

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